quarta-feira, 3 de junho de 2009

NO AR, MAIS UM CAMPEÃO DE AUDIÊNCIA



A indústria da informação vive de grandes comoções, e se as atividades cotidianas de atrizes de 60 que pensam ter 20, políticos, os pequenos acidentes e delitos urbanos, alguns confrontos rurais (envolvendo o MST ou alguma tribo pseudo-canibal) e os gols da rodada fazem parte do cardápio trivial, algo como o acidente do vôo 447 da Air France é considerado como indicação do cheff.
O avião, recheado de brasileiros, franceses e outros passageiros, simplesmente ‘desapareceu’. Esse ingrediente é ainda mais apreciado por redatores e reporteres, que podem lançar mão de inúmeras atrações para o público, como gráficos e animações mostrando o que pode (ou não) ter acontecido, as rotas que o avião pode ter tomado, as hipotéticas decisões do piloto, as possibilidades de sobrevivência. Tudo que é impreciso começa a ganhar contornos dramáticos, especialistas em aviação, civis e militares, se tornam atores principais nos telejornais e criam teorias para explicar o que simplesmente não se sabe.
Um dia depois do acidente a notícia já deu lugar à pura especulação. Nada se sabe sobre o avião, não se sabe sequer o número exato de passageiros (este sim, um verdadeiro absurdo). Quem está no Brasil 'sabe' que havia 57 brasileiros, se estiver na França o número sobe para 58.

Não obstante, já se sabe quem estava a bordo, quer dizer, já se sabe quem era famoso, ou rico, e que estava a bordo, como membros do governo, representantes de grandes empresas e... um príncipe tupiniquim. A manchete de um dos jornais cariocas no dia seguinte era: príncipe brasileiro estava a bordo. Bem, nesse momento, quem acreditava que vivia em uma república se sente enganado.
A lista de passageiros não é divulgada pelos franceses, mas o resto do mundo sabe e divulga, o que torna a decisão francesa uma bobagem em tempos de comunicação em tempo real e imediato. Mesmo assim, os números não batem.
Os repórteres se amontoam aqui e na França, no intuito nobre de transmitir informações. Só que o espetáculo é mais interessante que essa escassez de fatos. Assim, programas especiais são gerados às pressas, parentes dos famosos desaparecidos são entrevistados, casos como o de um casal de idosos, que pretendia comemorar bodas em Paris, ganham ecos de personagens do Titanic, anônimos com história comovente é um prato cheio, sempre. Há também o caso de dois passageiros que vieram entregar doações para brasileiros necessitados e retornavam de sua missão humanitária (isso fez com que a comunidade do Orkut: bonzinho só se fode! ganhasse mais algumas dezenas de adeptos). Enfim, os passageiros receberam um inesperado upgrade em suas vidas, ainda que jamais quisessem algo assim.
Em terra firme, a imprensa descobre os ‘milagres’. Sim, pois há aqueles agraciados pelo destino, ou pelo que quer que suas religiões usem para explicar, pessoas que simplesmente perderam o vôo. OH!!! Um não embarcou porque o passaporte estava irregular, outro porque perdeu os óculos, aquele porque ficou entretido no aeroporto com a amante, e por aí vai. O fato é que se tornam também celebridades. Mais programas são montados para ‘explicar’ a razão desses ‘mistérios’ que salvam pessoas da morte certa. Não é dito que centenas de aviões decolam todos os dias, e na mesma proporção, inúmeros passageiros perdem vôos. Nesses casos, são demitidos por atraso, têm que se explicar com as esposas (ou maridos), perdem contratos importantes, aulas etc etc.

Em acontecimentos como o do vôo 447 existe, secreto, o desejo que a situação se perpetue por mais tempo, pelo menos enquanto durar a curiosidade mórbida-solidária do ser humano. Ao contrário de tsunamis ou outras catástrofes, um avião desaparecido impede ajuda feita através de depósito em contas-corrente, doação de alimentos e roupas (que serão desviados, também misteriosamente, no caminho) e deixa no ar a sensação de que ainda falta a sobremesa.
Afinal, o que terá acontecido ao vôo 447? Teóricos da conspiração sugerem um rapto; partidários dos grupos boderlines do 11 de setembro garantem que Bin Laden seqüestrou o avião para jogá-lo do meio do oceano, explodi-lo com ogivas nucleares e causar um maremoto para devastar alguma capital judaico-cristã; o pessoal da ufologia não têm dúvidas: foi abduzido, e nunca mais teremos notícias.
Na verdade, pilotos experientes dizem que passam por nuvens cumulus nimbus (agora todos sabem o que é uma, certo?) diariamente, e que uma aeronave tão tecnologicamente avançada como aquela, com uma tripulação tão qualificada, não seria pega de surpresa por descargas elétricas facilmente previsíveis. Bastava desviar de algumas nuvens cumulus (você ainda não sabe o que é??? Como assim?). Razões para não ter acontecido o que aconteceu não faltam, explicações pululam, a imprensa embevecida agradece a mais esse campeão (involuntário) de audiência.

No mundo real, longe das mídias e dos vampiros, famílias desesperadas, ávidas por notícias, olham para o céu e rezam a procura de alento.

Um comentário:

Gabi disse...

Esse tipo de acontecimento é, nada menos, do que uma ótima aportunidade para que as pessoas se solidarizem com o próximo. Mas sem a piegas mesmisse do dia a dia como esmolas ou doação de cesta básica, por exemplo. Resumindo: excelente texto.