segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A SOMBRA E O ESPELHO



Sempre achei que as pessoas valorizavam demais minhas crônicas, mas nunca reclamei disso, afinal de contas, essa admiração passou a se transformar em dinheiro, fama, etc. Tudo bem, isso não traz felicidade, mas serve para comprar um monte de coisa.
Bem, o fato é que a minha exposição em um número cada vez maior de impressos e na internet propiciou uma vida que inclui visitas a diversos países, conhecer pessoas incríveis, boas mulheres e mulheres boas.
Outro dia, estava autografando meu trabalho mais recente, um livro de crônicas sobre as impossibilidades do poder. Uma análise pretensamente divertida sobre ditadores latino americanos e torneiros mecânicos. Sucesso de crítica e público, fico até com vergonha, às vezes. Mas, lá estava eu, tirando fotos com pessoas sorridentes, algumas nunca tinham lido nada meu, estava nos olhos. Tapinhas nas costas, uma senhora apertou minhas bochechas, um garoto puxou a mãe dizendo que aquela fila era muito grande e chata e boba, uma garota veio com livro de poesia para eu dar meu aval.... tudo previsível. Aí, tive a brilhante idéia de fazer uma pesquisa no boca a boca, para descobrir qual a crônica de que mais gostavam. Naturalmente, pelas vendas, seriam diversas, de épocas diferentes. Entretanto, algo estranho aconteceu. Fiz a pergunta a mais de cinquenta pessoas que me pediam para autografar o livro. Para minha surpresa, cerca de 90% disseram que adoravam a mesma crônica: "A revelação".
Vocês podem imaginar como um autor fica satisfeito ao perceber que fez uma obra-prima. E olha que os adjetivos eram de ‘sensacional’ para cima. Uma senhora chegou a dizer que preferia inclusive ler a versão em francês. Não havia dúvida, ‘A Revelação’ era um sucesso absoluto. E o melhor é que até adolescentes que estavam na livraria também citaram a crônica como a melhor coisa que leram. Dupla felicidade, adolescentes que leêm... e gostam de mim. Mas, pera aí, pensei. Não sei quantos elogios depois, me toquei de que eu nunca escrevi uma crônica chamada ‘A Revelação’, e nunca estive na França.
Podemos explicar Hugo Chavez e até como a China consegue crescer enquanto o resto do mundo mergulha numa crise econômica sem precedentes, mas algo desse tipo, não. Entrei no google e descobri que ‘minha’ crônica era um sucesso mundial, citada em inúmeros sites e serviu de base para teses e debates acadêmicos. A cada toque no teclado a coisa ficava mais estranha. ‘A Revelação’ era uma das crônicas de uma coletânea chamada SINAIS. E nos sites havia minha foto.
Eu já havia escrito sobre esses seres que preferem viver à sombra de outros a ousar e expor seus trabalhos. Bem, agora eu também era vítima dessa popularidade involuntária, e o pior é que o texto tinha mesmo algo de mim. Eu poderia ter escrito algo assim, mas... não escrevi.
Entrei em contato com minha assessoria e descobri que o tal livro estava esgotado. O departamento jurídico de minha editora começou a se movimentar, afinal, eu era exclusivo, e a coletânea saiu por uma tal de Infinitus. Aquilo se tornaria um caso de polícia, com certeza. Passara da homenagem à falsidade ideológica. O irônico era saber, através de uma pesquisa encomendada, que grande parte do meu sucesso vinha dessa farsa. As pessoas liam SINAIS e corriam atrás de outros trabalhos. Um crítico disse que sem essa coletânea, por causa especificamente de ‘A Revelação’, minha carreira talvez nem tivesse existido.
Aquela história começou a me incomodar e tirar noites de sono. Tornara-se uma questão de honra descobrir o surrupiador, o esperto, o cara que sabe copiar. No entanto, de uma maneira canhestra eu devia a esse homem (podia ser uma mulher) minha fama. Era incômodo pensar por que essa figura se mantinha oculta. Ele ganhara muito dinheiro às minhas custas com aquele livro. Por que não se lançou no mercado editorial? Claro que ele sabia do sucesso. Ou não? E... se fosse um psicopata?
Bem, o que começou com um aparente engano ganhou proporções quase cinematográficas. A cada descoberta o mistério aumentava. Não havia registro da tal editora. As lojas que comercializaram o livro simplesmente não tinham registro da obra em lugar algum, mas funcionários lembravam perfeitamente de ter visto o livro nas prateleiras. A gerente de uma megastore na zona sul verificou, inclusive, da tarde de autógrafo que aconteceu há cerca de cinco anos. Isso era um absurdo total. O impostor esteve lá, se passou por mim. Ela entrou nos arquivos de eventos. Havia algumas fotos, mas tiradas no meio de um tumulto. Nossa, eu, quer dizer, ele, chamou muito a atenção. Dava pra me ver, vê-lo, de relance apenas. A gerente riu e perguntou se eu não lembrava daquele dia. Eu disse que era impossível esquecer (se tivesse acontecido, claro).
Bem, depois que um neoliberal sumiu com o metalurgico Lula e assumiu suas feições, tornando-se presidente da república, pensei, tô ferrado! Claro, era só uma questão de tempo até que o homem viesse atrás de mim. Ele parecia comigo, escrevia no meu estilo, e... era melhor do que eu. Pensei também que talvez eu devesse encontrá-lo antes e acabar com ele, afinal, tudo que eu era se devia a um engano monstruoso. Ele, e não eu, escreveu as melhores crônicas.
Passei a ficar preocupado, muito preocupado. Era uma questão de honra descobrir o farsante. Mas, no mesmo momento, pensei que se o caso fosse revelado, metade, ou mais, da minha fama iria para o brejo, onde quer que ficasse o brejo. Eu poderia falar com meus amigos, com o Vasconcelos, por exemplo, mas, não, eu poderia perder meus amigos também, pois a maior parte dos atuais, só veio depois da publicação da ‘Revelação’.
De repente, percebi que estava em um beco sem saída, e nesses casos você não tem escolha, tem que agir. Se o fulano resolvesse confessar que havia escrito a cronica tudo estaria terminado, para mim. Seria execrado pela mídia, apareceria em programas sensacionalistas e estaria a um passo do precipício chamado ostracismo. Dizem que quem cai nele jamais volta. Eu não deixaria isso acontecer.
As semanas passaram lentas, até que um belo dia ouvi um anúncio na tv dizendo que eu, ele, estaria no programa Você é o Show. Eu não acreditei. Ele perdera a noção completamente. Como poderia aparecer assim, em público? De qualquer forma, era a chance, isso era o que importava.
Disfarçado, usando um bigode postiço, cabelos pintados e um chapéu panamá, consegui entrar no auditório do programa. Estava lotado. O apresentador chegou rindo, como sempre, rodos eles riem. Fui obrigado a assistir uma infernidade de pseudo atrações. Uma brincadeira com macacos e mulheres vestidas de banana; um anão que nunca se afoga. Se bem que essa foi por pouco. A vida de um artista famoso de quem ninguem se lembrava e uma dança nova, que vai ser o sucesso do proximo carnaval. Era a mesma que eu vi há 15 anos atrás, na Bahia. E, finalmente, chegara a hora.
Meus amigos, temos o prazer de receber em nosso programa o sensacional escritor, e autor de uma das croncias mais aclamadas de todos os tempos, Érico Justissimo. Ele vai nos falar de seu novo livro, Te encontrei, cheio de mistério e humor. Palmas, auditório!
É um prazer estar aqui.
Durante os 40 minutos de entrevista minha vontade foi a de levantar e acusar o impostor. Mas, não. Era isso que ele queria, por isso se expôs. Não tinha medo de mim, pelo contrario. Dali em diante iria se expor para me provocar ao máximo. Imediatamente, veio à cabeça minha cobertura na Barra da Tijuca e o apartamento do Jardim Botanico. NÃO! Gritei interiomente. Tudo acabaria hoje.
Esperei o apresentador se despedir e saí. Eu conhecia bem aquelas instalações, já estivera em programas ali. Tirei o meu disfarce para facilitar o acesso. O impostor usava uma roupa muito parecida com a minha. Camisa azul celeste e calça cinza com meia amarela. Ele copiou tudo. Só as meias eram mais amarelas.
Desci as escadas e esbarrei com o apresentador, Fofão. Ele disse que adorou minhas respostas. Se ele soubesse. Só depois de 10 minutos consegui me desvencilhar. Corri feito um louco e ao chegar ao camarim... estava vazio. A camareira me olhou e perguntou se havia esquecido algo. Eu saí correndo em direção ao estacionamento, no terraço. Lá estava ele, sozinho, entrando no carro. Meu Deus, até o carro era uma cópia do meu.


- Fique aí, mesmo!!! – gritei, com toda a força de meus pulmões! – aos poucos, ele foi virando.
- Nossa, estava demorando. Por alguns segundos achei que não viria. – deu um sorrisinho enigmático.
- Hã? o que quer dizer, impostor? – eu não estava armado, mas ele não sairia dali com vida.
- Quero dizer que você se saiu bem. Consegiu.
- Você é louco! Ganha a vida com meu trabalho, meu nome.
- Hahahahahahahahahaha
- Pare de rir. Caso você não tenha percebido, esse mundo é, sem dúvida alguma, muito pequeno para nós dois. – Caramba, ele era uma cópia perfeita, não apenas parecido comigo.
- Tá, desculpa, desculpa. Não vou mais rir. – ele encostou no carro e abriu sua pasta cheia de papéis. Eram crônicas, reconheci o estilo da escrita manual, que também era idêntica a minha.
- O ... o que é isso?
- Calma, deixa eu ver. Hum... – ele pegou uma das folhas, olhou de cima a baixo. – não sei...
- NÃO SABE O QUÊ?
- Bem... pode ser assim. – pegou uma caneta e começou a rabiscar algo. Escreveu umas tres folhas – abriu um sorriso que quase me enganou. Então, meteu a mão na porta do carro e a abriu. – bem, vamos terminar isso.
- O quê??? – ele tinha uma arma, era isso! Eu tinha que agir depressa. Pulei em cima dele, que tentou se defender. Era como bater em mim mesmo. Ele foi cambaleando e tropeçou em um cano de ferro.
- NÃO!!! – gritei, pois sabia o que ia acontecer em seguida, não tinha como ele segurar em nada. E caiu.
Eu peguei a pasta e os escritos que estavam no banco traseiro do carro e fuji correndo. Estava acabado. Ninguém iria suspeitar de nada.
Já em casa, tomei um banho. Pensei em tudo que havia acontecido, no que a vida havia se tornado em tão pouco tempo. E o público não sabia de nada. Como seria a partir de agora? Liguei a tv e... nada. Bem, eles não iriam noticiar o caso tão depressa. Eu tinha é que pensar em uma estratégia, afinal, encontrariam uma espécie de sósia. Há há há seria até engraçado escrever sobre isso. Olhei a noite lá fora, toda estrelada, quente. Pensei ‘a vida é boa!’. Liguei o som e deixei uma música antiga da Cindy Lauper invadir o ambiente. E assim, pensei que eu acabaria dormindo, deixando os problemas para o dia seguinte. Foi aí que passei o olho na sala, e na mesa estavam minha pasta e também os papéis do falso escritor. Talentoso, sem dúvida. Fiquei curioso, será que entre os papéis existiria outro ‘A Revelação’? levantei e comecei a mexer. Havia contos e cronicas antigas, trabalhos meus. Coisas que eu não havia publicado. E ... um papel meio amassado. Sim, era isso que ele estava escrevendo pouco antes de cair.
‘ ... eu não sabia como terminar a história. A presença dele era incomoda demais. Só que nesse exato momento, ele me olha, ameaçador. Vai me atacar, vai pensar que vou pegar uma arma ou algo assim. Vamos lutar e eu vou cair. A criatura mata o criador, no fim das contas. Ele vai achar estranho, entretanto, o fato de ninguem comentar o incidente. Não haverá corpo para ser achado....
Lendo aqueilo, comecei a suar, mas continuei.
‘Ele vai suar muito e perceber que existe algo além do que esperava. O som de um trovão o assustará e..."’ Há, não teve nenhum.. VRUUUUUUUUUUUUUUUUUM Ai meu Deus, que é isso? Vou fechar essa janela. Deixa ver onde eu parei... aqui ‘irá até a janela para trancá-la e lá vai perceber um vulto atravessando a rua’. Não é possível, como isso está acontecendo? Quem é aquele maluco atravessando a rua nessa chuva? Não, nada disso está acontecendo de verdade. É um sonho. Sim, é isso, um sonho. Eu vou acordar, eu vou acordar, agora!!! Caramba, ainda estou aqui. E aquele cara lá embaixo, com aquela roupa. É o impostor de novo, ele não morreu. Mas, como? É impossível, eu sei que é impossível! Essas coisas não acontecem na vida real. Eu tenho que sair daqui, ele vai se vingar. Droga, por que não consigo parar de ler essa porcaria? ‘... ele não vai obter resposta, a não ser o som de sua própria voz ecoando. Tentará sair pela porta...’ sim, é claro, eu tenho que sair. A chave. Aqui. Pronto, agora é só virar a maçaneta.. ei, que barulho é esse? Deve estar escrito no texto. ‘Um raio riscou o céu naquele instante, depois veio o trovão, depois os passos encharcados, que agora estavam quase à porta. Ele vai se desesperar e correrá até a cozinha para pegar...’ UMA FACA! Eu tenho que me defender desse louco. Como ele consegue fazer isso? Muito bem, agora é só abrir a prota e...Mas...mas... não tem ninguém aqui. Estou ficando louco, deve ser isso. Meu Deus, por quê? Bem, acabou. Eu estou aqui, esse impostor nunca vai pegar meu lugar. Deve ser o estresse, claro que é. Vamos ver como ele termina esse texto insano. "Sentado no sofá, ele pegou não havia ninguem lá embaixo, eu estava me deixando levar por esse monte de besteira que ele escreveu. Vamos ver como esse palhaço termina a história. ‘... pegou as páginas soltas e as leu. Só então percebeu que nunca passou de um personagem criado por mim. Seu mundo começou a desaparecer lentamente ao redor. As paredes, a tv, os móveis. Ele voltará ao limbo, de onde sairá sempre que alguem ler essa cronica".