sexta-feira, 16 de maio de 2008

MERECIMENTOS


Merecimentos


Eu tinha uma reunião em São Paulo, o vôo estava atrasado em mais de duas horas, só isso explica minha atitude. Sentei na poltrona e deixei minha cabeça vagar nos números que apresentaria na reunião. Nunca gostei de viajar com tempo ruim, isso sempre me deixou irritado. O fato é que assim que deixamos o chão a pessoa começou a assobiar. Até aí, tudo bem, o problema é que aquilo começou a cantarolar também. Pagode! Odeio pagode. Cmon, estávamos na primeira classe.

Durante vinte minutos tentei negar a existência do ser, mas, de nada adiantou. Depois das músicas de pagode, meu silêncio foi invadido por um ruído intermitente, um virar de páginas que não parava. Olhei para trás e encarei o indivíduo. Devia ter uns vinte e poucos anos, e o terno rosa nada tinha a ver com o que aconteceu. Eu odeio homossexual, mas esse não era o problema, não sou preconceituoso. Não é porque você odeia que você vai ter preconceito, entende?
Queria que meu olhar de fúria cega causasse a sensação de medo na pessoa, mas o máximo que ele fez foi franzir as sobrancelhas, levantando uma e abaixando a outra, e perguntar se eu estava sentindo alguma coisa. O engraçadinho perguntou se eu estava com fome. Sem responder, voltei a minha posição e resolvi me acalmar.

Meia hora depois, alguém teve a infeliz idéia de ligar a tv. O filme era Priscila, a Rainha do Deserto. Pronto, eu sabia que as coisas não iam acabar bem. O cidadão não conseguia se conter, dava gritinhos e, não satisfeito, cantava todas as músicas. Quer dizer, cantava é força de expressão. Ele berrava, e como era desafinado. Chamei a aeromoça e ela foi pedir silêncio ao camarada. A pessoa disse que vivia numa democracia e tinha todo o direito de se expressar como julgasse melhor. Nessas horas, sempre tenho saudades do meu tio general.
Mas, a pior parte ainda estava por vir. Do lado de fora, a tempestade engrossava, e a cada relâmpago a criatura dava um gritinho e chutava minha poltrona. Cansado da situação, levantei-me e esbravejei contra a criatura.

- Será que o senhor pode se comportar como um ser humano normal?
- Quem, eu?- disse a coisa, com a língua presa, olhando para os lados, fingindo não entender.
- É, o senhor mesmo. Seu comportamento é, no mínimo, desagradável. Estamos num avião e devemos respeitar a individualidade de cada um. Será que dá pra entender?
- Eu não dou nada! Isso é uma cantada? Olha que eu te processo por assédio sexual, heeeein!
Tenho que confessar que me descontrolei. Parti pra cima da pessoa, que gritava como um alucinado.
- Socorro, helllp, ele quer me estuprar!!!!!

Eu queria mesmo matá-lo, mas fui impedido por outros passageiros. A aeromoça disse que alguém queria trocar de lugar comigo, mas eu não quis. Nunca fugi de nada e não seria aquela a primeira vez.

Pouco depois, as coisas saíram do controle. Pensei que era uma simples turbulência, a princípio. Quando ouvi o comandante pelo auto-falante soube que algo estava errado. Ele explicou que estava com problemas em uma das turbinas e por isso perderíamos altura. Só não disse que aquilo ocorreria imediatamente, nem que seria uma coisa tão abrupta. Meu estômago veio à boca, e antes que eu começasse a rezar o rapaz de rosa deu um berro que encobriu todas as outras reações.
- Ai meu Deus! Aí vou eu...aí vou euuuuuuuuuuuuu.

O cara estava sem o cinto, e segurava no meu pescoço enquanto o avião caía. Tentei me esquivar e acabei levantando. Lembro que voamos pelo corredor, enquanto tentava me desvencilhar. Aí o rosinha se segurou na porta de emergência. A gritaria era tanta que não eu conseguia entender o que ele dizia, era algo como "eu não vou sozinho, eu não vou sozinho!!!". Quando consegui me virar, o desgraçado abriu a porta, e, bem, quando acordei já estava aqui. Aliás, que lugar é esse? Será que não dá pra ligar o ventilador?

Nenhum comentário: