quarta-feira, 29 de julho de 2009

PRETÉRITO PERFEITO



Na sala, Maria, a empregada, e Maria Aparecida, a patroa, assistiam à novela das seis. Paulinho brincava no chão com seus bonecos japoneses, enquanto Rodolfo lia a folha de São Paulo. Ninguém ali notou quando o vô Asdrúbal passou do banheiro para o seu quarto.
Não sabia bem por que, mas o octogenário acordara diferente, como se procurasse algo importante demais, só que que não sabia o que era. Durante o dia, havia conversado com os amigos da praça. Até ganhara uma partida de damas, algo que há semanas não acontecia. Ouvira o Ribamar falar mal da família, a dona Maricota mais uma vez acusar o genro de estar olhando meio estranho para ela, apesar do rapaz ter uns 30 anos, ser estrábico, e ela ter 92. Nem mesmo a corrida que um pitbull deu no Aparício, que na fuga esqueceu a bengala e a artrite, foi capaz de afastar aquela sensação de que algo não estava muito certo.
Ao entrar em seu quarto, Asdrúbal foi de imediato até o armário. Pegou uma pequena caixa que, não lembrando por que, escondera atrás de perfumes e outros papéis. Sentou na cama e calmamente soprou a poeira que tomara posse da caixa de papelão. Até o desenho, pássaros e árvores do antigo Passeio Público, apresentavam a indelével marca do tempo. Asdrúbal pegou um saco plástico que armazenava seus pertences e desatou a fita.
Nossa!, espantou-se.

Papéis antigos, medalhas de jogos estudantis, cartas de amor que nunca tivera a coragem de enviar, um mundo perdido se mostrava ao velho paraquedista. Pegou um cartão que Carminha lhe mandara, dizendo o quanto a noite no Forte Copacabana havia sido especial. De fato, a partir dali Asdrúbal formaria sua família, e a doce Carminha traria à luz Maria Aparecida. Sim, depois viriam Rodolfo e Paulinho, mas e daí? pensou Asdrúbal, ninguém é perfeito. Olhou demoradamente para uma medalha e foi capaz de lembrar do jogo de vôlei contra a turma do Colégio Santo Inácio, afinal ele era o capitão. Riu desconcertado quando de assalto lhe veio à mente um momento de euforia, logo após a partida, quando saiu correndo em volta da quadra e derrubou a cadeira do juiz, que fraturou três costelas e engoliu o apito. Bons tempos, bons tempos, disse para si.

Um breve suspiro fez o velho militar pensar no quanto tudo havia mudado, e quão rápidas se fizeram as estações. Era mais do que uma sensação de nostalgia indômita, mais do que uma saudade, sentimento que não se consegue explicar. Não, era como uma sensação de roubo. Sim, pensou, era isso, como se houvessem roubado seu mundo, suas implicâncias, seus momentos de plenitude. Espalhou todo o conteúdo do saco plástico na cama, e ficou contente da intrometida da Maria, a empregada, não ter aparecido para perguntar se já podia esquentar o mingau.
Com os dedos, mergulhou no infinito de possibilidades e logo deparou com um álbum de fotos.
Estão todos aqui.
E estavam mesmo. Toda a turma do Colégio Militar, os páraquedistas, o Bráulio, Vasconcelos, Antônio Idalgo, Idelfonso e Venceslau. Havia momentos especiais, como condecorações no Palácio do Catete, mas também flagrantes de pura audácia. A subida no pico da Bandeira foi marcante, e lá estava o Venceslau, sempre sorridente. Aliás, pensou Asdrúbal, o rapaz era um tanto estranho, pois nas empreitadas na mata sempre dormia com um urso branco de pelúcia, dizia que era pra dar sorte. E só agora Asdrúbal notara que em todas as fotos o Venceslau estava olhando de soslaio para o Antônio Idalgo.

A Carminha que estava ali, tão próxima, era pouco mais do que uma menina. Não tinha uma ruga sequer, nem dor de cabeça, nem tinha partido. De repente, Asdrúbal percebeu o que o incomodava. Não era o fato de que hoje em dia já não existe ninguém chamado Idelfonso, ou Venceslau, ou Asdrúbal. O que o incomodava era o tempo.
Esse ser, que não tem forma ou cheiro, que a Física vê como uma quarta dimensão, havia levado tudo que em algum instante fez diferença para Asdrúbal. Ora, que fim levou seu Dodge Dart (que o Paulinho pensa que é raça de cachorro)? E o coronel Apolônio, que lhe ensinou tanto sobre a vida? seus pais, que nunca duvidaram do sucesso do filho, e sempre bancavam viagens de férias no exterior? Onde estavam seus coturnos, sua roupa camuflada? Será que Carminha aceitaria um pedido de namoro? Lágrimas saltaram dos olhos da velha águia, que ficou ainda mais embaraçado quando olhou para seus pertences largados sobre a cama. Ele pegou as fotos de novo e se deu conta de que até as cores haviam desaparecido. Pior, era como se nunca tivessem existido, como se tudo que viveu fosse em tons de cinza e sépia, que é a cor mais distante.
Cinco minutos depois, a família ainda permanece na sala. Só Maria, a empregada, foi para a cozinha esquentar o mingau de seu Asdrúbal. Então, Paulinho ouviu o som de uma chave trancando a porta do quarto. Olhou para o alto da escada e observou o avô, todo impávido. Ele fez um gesto e pediu ao neto que não o denunciasse, não queria atrapalhar a leitura da Folha nem a novela das seis. Paulinho piscou o olho, concordando, enquanto Asdrúbal desapareceu no corredor. Um barulho chamou a atenção da dona da casa.

-Ué, quem saiu? – pergunta Maria.
-Foi o vô.- disse Paulinho.

-Ora, onde será que ele vai a essas horas?

-Não sei, mãe. Ele tá doente?

-Claro que não, menino. Por que você pergunta?

-É que ele estava estranho... todo cinza.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O TEATRO DOS VAMPIROS , ou "Someday we will die in your dreams, How I wish we were here with you now".





EXISTE beleza na dor? A questão pode ser retórica, mas quando Michael Jackson resolve partir definitivamente para Neverland, ela ressurge como nuvens pesadas em um horizonte cinza.
Alguns artistas fazem de seus tormentos obras de rara beleza, e assim acabam se perpetuando no imaginário popular, tornando-se algo maior, mais intenso e mais destrutivo do que poderíamos imaginar. O sucesso, a fama e a tragédia, vez por outra caminham juntos, de mãos dadas.
Nosso mundo emergencial traz explicita uma sentença: Gire as engrenagens, ou seja destroçado por elas. O showbussiness é uma dessas engrenagens, um dos elos fundamentais numa sociedade que se alimenta de ego, dinheiro e abstrações.
Janes Joplin, Jimi Hendrix, Brian Jones e Jim Morrisson, mortos aos 27 anos, tornaram-se exemplos de como as estrelas mais brilhantes se consomem rapidamente. Nesses casos, as drogas foram responsabilizadas pelos trágicos e prematuros desfechos. Mas, ao tomarmos conhecimento da vida desses músicos percebemos que as drogas eram o alívio, vistas como única alternativa para continuar a jornada. Ou interrompê-la.
Jim Morrisson definia o público como um vampiro insaciável, que sugava até a última gota de sangue de seus ‘ídolos’. É como se um artista qualquer desejasse muito fazer sucesso, ter fama, sexo a vontade, milhões na conta bancária e conseguisse exatamente isso. Mas, o preço a se pagar é caro.
Ian Curtis, morto em maio de 1980 aos 23 anos, era o vocalista da banda inlgesa Joy Division. Epilético, fazia de seu problema um motivo de arrebatamento dos fãs. Ele dançava de uma maneira desengonçada imitando, inconscientemente, os espamos da epilepsia. Certa vez, teve um ataque no palco, caindo em cima da bateria de maneira violenta. A platéia delirou.
Curt Cobain, aos 27 anos, em 1994, foi encontrado morto em seu apartamento. Em comum, todos os citados até aqui cometeram suicídio. Seja pela ingestão de drogas, alcool ou pelo estampido de um revolver, eles deram cabo da própria vida. Optaram por isso.
Elvis Presley e Michael Jackson não fogem à regra. A ingestão alucinada de medicamentos é uma das maneiras mais eficazes de suicídio. Elvis, em seus últimos anos, tranformara-se numa auto-paródia. Suas aparições públicas eram um espetáculo bizarro, e a cena dele distribuindo toalhinhas ensopadas de suor para senhoras alucinadas no Madson Square Garden é algo inesquecível. Michael, por sua vez, repetia os mesmos passos e gritinhos há vários anos, e pelo vídeo dos ensaios do que seria sua nova turnê nada mudaria.
Essas pessoas conquistaram o mundo, ou uma boa parcela dele. Subiram a montanha mais alta, de onde se pode ver crianças frágeis, adolescentes histéricos, adultos entediados e velhos saudosistas, todos gritando seus nomes, idolatrando-os. E, ao contemplar esse abismo perceberam que haviam criado e alimentado uma massa triste, perdida, insaciável, que precisa de refereciais, de deuses para adorar.
Artistas assim enriqueceram donos de gravadoras e fornecedores de drogas, em troca receberam o palco, a luz cegante da ribalta.
Esses jovens, e assim serão eternamente, morreram sozinhos em seus apartamentos, cheios de dor e melancolia. Suas biografias, ao mesmo tempo em que os humanizam, que tocam seus pés de barro, os tornam ainda mais rentáveis para a industria que os produziu. Um círculo vicioso.
Essa mesma indústria jamais admitirá que a morte era a única saída para cada um desses artistas, incapazes de conviver com o anonimato, de voltar à caverna, de serem normais. E quem é normal?
Nesse universo estranho, existe até bolsa de apostas sobre quem vai ser o próximo a ir embora. O nome escolhido é Amy Winhouse, afinal, ela tem tudo que é necessário para entrar no halll da eternidade: É jovem, talentosa demais e infinitamente triste.